segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O que aconteceu com Helena e Beatriz

Beatriz fala…

Ao criar o Manual da Lésbica Contemporânea, eu e a Helena combinamos de seguir fielmente apenas uma regra: Jamais, sob hipótese alguma, aqüendar as leitoras. A idéia do site era de ajudar as pessoas, de contar os nossos relatos, não de autopromoção para pegar todas as lésbicas virtuais que gostassem dos textos.

E é por essa regra ter sido quebrada, duas vezes, que eu agora escrevo. O site, além dos textos originais do Manual da Lésbica Contemporânea, possuía várias colunistas, muitos outros textos e um fórum de discussões que na época era um dos melhores lugares da rede para conhecer mulheres interessantes. Eu e a Helena aparecíamos por lá, dávamos pitacos, mas nunca adicionávamos as amiguinhas para qualquer tipo de envolvimento amoroso.

Livia

Eu recebi uma mensagem privada deveras interessante. Uma jornalista, repórter da Rede Globo, dona de lindos olhos azuis (não aqüendar, não aqüendar, não aqüendar!!) me escreveu dizendo que via um excelente potencial comercial no site e que queria conversar a respeito. Adicionei a garota no MSN do manual e começamos a conversar. Eu não preciso dizer que o teor da conversa não ficou no “empresarial” muito tempo certo?

Nós conversávamos todas as noites, imaginávamos a viabilidade de um namoro à distância (ela morava do outro lado do Brasil) e combinávamos de nos encontrar. Jornalista, professora universitária, linda de morrer e interessada em mim, o que eu poderia querer mais?

A Lívia comprou a passagem. Ficou de me visitar no feriado de 15 de novembro e tudo o que eu fazia era contar os dias. Tudo ia maravilhosamente bem, o site, o fórum, o meu trabalho. E eis que vieram os Beatles!

Eleanor Rigby

Todos os dias, como boas administradoras de site, eu e a Hell entrávamos no fórum para ver a movimentação e obviamente saber quem havia de novo. Me deparo com um Nickname que remetia à minha música preferida dos Beatles e o seguinte profile:

- Sou paulista, administradora de empresas e formada em música, mas abandonei a minha profissão para me dedicar ao esporte. Hoje, sou atleta olímpica de um esporte que não posso dizer qual é, porque seria muito fácil descobrir a minha identidade.

MEU DEUS QUEM SERÁ????????

A curiosidade tomou conta do meu ser de uma forma gritante! Mas como a regra do “não aqüendar” não me permitia uma abordagem direta, respirei fundo e me comportei. Passei quase uma semana desesperada tentando descobrir quem diabos era a atleta olímpica que cantava e era formada em administração.

Até que obviamente eu não agüentei perguntei pra Helena.

- Hell, você já viu uma tal de Eleanor Rigby? Eu queria tanto saber quem era! Pena que a regra…

A Helena me olha triunfante e diz:

- A regra já foi meu amor, passei a noite toda conversando com ela. E digo mais, ela é seu número e quer lhe conhecer!

- Hell, eu estou virtualmente comprometida e não vou mais paquerar com seu ninguém!

- Eu sei que você é ferrolho Beatriz, mas eu queria muito que você conversasse com ela. A garota tem uma história interessante. Ela nunca ficou com mulher, descobriu que era lésbica aos quatro anos de idade vendo um globo repórter sobre homossexualidade infantil e decidiu, na maturidade dos seus quatro anos, nunca contar nada a ninguém.

-Como assim?

- Pois é, vai entender. Quando ela completou vinte e dois anos, decidiu que não ia mais agüentar tudo aquilo. Chegou para a mãe e disse: “mamãe, eu sou lésbica”. Como ela não conhecia nada nem ninguém, fez o que todo o nerd de verdade faria!

-Google?

- Exatamente, ela digitou o nome lésbica no Google e adivinha o que apareceu?

- Nós!

- É, ela leu o Manual de cabo a rabo, e ficou encantada ao saber que tudo aquilo que ela tinha ouvido antes eram estereótipos, e que existiam meninas “iguais a ela” mas ela ainda ta muito surtada.

- Sei…

- É ai que você entra Bia. Conversa com a garota, dá umas dicas, não custa nada fazer uma boa ação para uma lésbica principiante.

- Tá bom, ta bom, pode colocar ela no MSN do Manual.

O que eu não sabia, era que a Helena já tinha mostrado uma foto minha pra garota, dito como eu era maravilhosa e como nós seríamos um casal perfeito e viveríamos felizes para sempre. Mui amiga!

E foi ai que começaram todos os meus problemas…

Uma vez adicionada no meu MSN, foram três dias de conversas surpreendentemente adoráveis. Nós tínhamos a mesma banda preferida (uma banda de rock progressivo dos anos 70), amávamos a mesma raça de cachorro, e conversamos durante pelo menos 24 das 72 horas sem parar. Tinha tudo pra ser uma paquera normal, até que surgiu a primeira bomba:

- Beatriz Almeida, escute o que eu estou dizendo porque eu não vou repetir.- O que foi, Vi?- Um dia você vai ser minha e eu vou ser sua.- Você sabe disso com três dias?

- Você vai ser o amor da minha vida.

CALMA, MUITA CALMA NESSA HORA! Eu sabia que a Vitória era uma pessoa intensa, mas dizer a pessoa que é o amor da vida com três dias, ela só podia ser maluca! MEDO MEDO MEDO! Ri desconcertada, me fiz de doida, disse que precisava sair e, obvio, liguei para a Helena.

- Hell?- Como vai a sua conversa com a mulher absurda que eu arrumei pra você?- Quem? Ela é maluca, só pode! Você acredita que ela disse hoje que nós íamos casar e ser felizes para sempre? Ela me conhece faz três dias!- Cuidado meu amor, ela sempre consegue tudo o que quer!- Sabe o que eu acho? Que ela é uma menina mimada, que nunca levou um não e que no amplo conhecimento que ela tem sobre o mundo lésbico por alguma razão bizarra e desconhecida, decidiu que eu era a mulher da vida dela e que ela ia me ter. Pra cima de mim não meu amor, tudo o que eu menos preciso na minha vida é de uma menina mimada achando que é minha dona! E além do mais, eu vou namorar a Lívia e ela já está de passagem comprada.

- AHAM. Se você não quer meu amor, por que ela incomoda tanto você?

A Helena estava certa, alguma coisa me atraía naquele jeito impulsivo, naquela confiança inacreditável e naquelas sensações malucas que a Vitória me despertava. Por razões até hoje desconhecidas, eu sentia falta de falar com ela, de ver a plaquinha do MSN subindo e das declarações malucas de amor.

Eu dei meu telefone para ela, e nós nos falávamos muito. Eu adorava o sotaque paulista, as expressões bobas, a voz articulada e confiante. Alguma coisa estava acontecendo, e eu não queria admitir.

Queria que o meu pragmatismo não fosse tão sentimental. Eu tentei pensar de todas as formas com a razão, DE TODAS! A Livia estava de passagem comprada, ela era a namorada perfeita e eu não ia trocar aquilo por uma menina kamikaze. Eu precisava terminar com aquilo, e rápido.

Tomei toda a coragem do mundo e fiz a única coisa decente que eu poderia fazer. Tive uma conversa bem séria com a Vitória.

- Olha Vi, a gente já está conversando faz um tempo, eu amo falar com você, eu estou encantada, mas não é justo ficar lhe deixando em banho-maria pro caso da minha história com a Livia não dar certo. Eu disse a você desde o começo que ela existia, a gente está se envolvendo e eu não to me sentindo legal com isso. Não é justo nem comigo, nem com você e muito menos com ela.- Eu só quero uma chance, porque eu tenho a mais absoluta certeza de que no momento em que a gente se beijar, nunca mais você vai querer mulher nenhuma na sua vida. Eu estou indo praí, dia 4 de dezembro, vou participar de um campeonato. Fique com ela se quiser, eu só quero um encontro e um beijo, faça disso a sua despedida de solteira, eu espero.(que inferno de menina confiante!)- A gente não vai se beijar Vi, eu não posso fazer isso, nem vou. Eu levo você pra passear, apresento os meus amigos, mas a minha decisão já está tomada, por mais que me doa o coração.- Eu posso te fazer um pedido, um último pedido?- Claro, o que você quiser.- Eu quero te mandar uma música, e eu só quero que você escute sozinha. Se você é quem eu estou pensando que você é, você vai entender o recado.

- Tá bom, manda.

Eu nunca tinha sentido uma coisa daquelas antes. É uma sensação que me sufoca até hoje. Uma música instrumental, muito bonita, de fato. Mas por alguma razão, quando a música começou a tocar, alguma coisa entrou dentro de mim. Era uma angústia, um desespero. Eu comecei a chorar compulsivamente, até algum tempo depois da música acabar. Eu estava assustada, zonza, sem saber exatamente o que acontecia, numa explosão de sensações únicas, distintas.

Quando o telefone tocou, eu ainda não conseguia falar direito.

- Alô?- O que você fez comigo? Eu… eu… ta doendo, eu to sufocada.

- Era só isso que eu precisava saber. Essa música sou eu, é a minha alma. Eu nunca mandei ela pra ninguém, mas eu tinha certeza que você sentiria isso. Eu sabia que era você, eu sempre soube, desde o primeiro dia.

Então eu entendi que eu já não tinha mais escolha, e que ela já estava dentro de mim, de uma maneira irreversível.

A fatídica música foi enviada cerca de uma semana antes da Lívia chegar. O hotel estava reservado, os passeios comprados, os planos feitos. Eu não sabia o que fazer. Como eu ia ficar com uma outra pessoa depois daquilo? Como eu poderia não ficar com alguém que eu havia decidido ter um relacionamento? Tentei agir com a razão, e foi a coisa mais idiota que eu poderia ter feito.

A Livia chegou, eu fui buscá-la no aeroporto com um sorriso no rosto, mas com os pensamentos já em outro lugar. Ela sentiu que havia algo muito estranho, e eu não tive maturidade, e principalmente coragem para contar a ela o que estava acontecendo. Foi muito doloroso e traumático, para todas as partes envolvidas. Nós passeamos pelas praias, ela conheceu os meus amigos, e a minha vida. Mas o meu coração, esse já era de uma outra pessoa.

Quatro dias depois, ela foi embora para casa arrasada, enquanto eu me sentia a pior pessoa do mundo por só conseguir contar os dias para a chegada da Vitória. E se eu não gostasse dela nem ela de mim? Todas as loucuras de inseguranças passavam pela minha cabeça naquele momento, e eu tive muito medo de passar pelo que a Lívia tinha passado. Foram dias muito, muito longos.

A Vitória pediu que eu escolhesse um hotel para ela, já que ela não iria de jeito nenhum ficar junto com a delegação e queria ficar o mais próximo da minha casa que conseguisse. Ela queria que eu dormisse com ela todos os dias, disse que não gostava de dormir sozinha, e que queria acordar do meu lado pra sempre.

Pânico outra vez! Eu ia ficar hospedada num hotel com alguém que eu nem conhecia e que ao mesmo tempo sabia que era minha alma gêmea. Deus do céu! Respirei fundo e fiz a única coisa que eu poderia ter feito: reservei o hotel.

Chegou o dia! O vôo da Vi chegava por volta das 10 da manhã, e eu acordei bem cedo para fazer o check in do hotel antes de ir buscá-la. Parei numa farmácia, comprei um batom bem vermelho e escrevi um poema e uma declaração de amor no vidro do banheiro.Não sei como nem porque, eu estava extremamente calma. O avião atrasou um pouco, eu comprei uma coca cola light e sentei calmamente no saguão. Meia hora depois recebo uma mensagem no meu celular:“Cheguei”

“Eu sei, meu amor, venha logo pra cá que eu estou esperando”.

Mais trinta minutos passaram até que a Vitória em pânico sentada no banquinho do banheiro, tomasse toda a coragem do mundo e mais alguma pra atravessar o portão de embarque e me encontrar.

Foi uma cena que marca a minha vida até hoje, ver aquela menina de andar desastrado tropeçando na mala e no carrinho quando me viu. Muito, mas muito diferente da mulher confiante que disse que só precisava de um beijo.

Eu sorri com a confiança inocente de quem não lembra que o mundo dá voltas, afastei o carrinho, não falei nada e dei um abraço. Eu não sei quanto tempo nós ficamos abraçadas, mas tempo suficiente pra entendermos que aquilo era real de verdade, que ela estava realmente lá, que tudo tinha dado certo.

Começamos, ou melhor, continuamos o nosso romance de sonho. O Campeonato da Vitória durou dez dias e foi a primeira de nossas muitas luas de mel. Quatro meses depois eu mudava para São Paulo, e se a minha história virasse um filme, nós teríamos vivido felizes para sempre.

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